Nesta semana, tão logo entrei na padaria, em final de tarde, assisti a uma cena que me deixou estarrecido, imóvel, sem conseguir emitir único som, qualquer um que servisse como advertência ou mesmo simples interrupção. Uma senhora branca, loura, de olhos claros e estatura mediana, vestindo farda de empresa brasileira responsável pela entrega de documentos, papeis, correspondências e encomendas, bradava, alto e bom som, olhos que pareciam querer esbugalhar-se de ira, sua inconformação por haver sido, em suas palavras, “abordada por um desses criminosos” que ficam a pedir ajuda de quem por ali passa. Algumas outras pessoas permaneceram, como eu, assistindo mudas à cena de verdadeira estupidez, parecendo igualmente atônitas com o descontrole emocional que os gritos denunciavam e penso até que algum dos circunstantes possa também ter imaginado encontrar-se a Servidora “possuída pelo demônio”, como se dizia antigamente.
Não satisfeita em proclamar sua fúria, a descontrolada senhora ainda responsabilizava, como fez em direção a mim, os que “incentivam essa bandidagem enfiando a mão no bolso e dando dinheiro”, em vez de adotar, por exemplo, comportamento que afaste o indivíduo impertinente, até mesmo recorrendo à polícia, que o “xadrez é o lugar de todos eles”. E seu discurso de ódio (para usar expressão de tempos recentes) incluía afirmações do tipo “esses bandidos que assustam e desafiam as pessoas de bem” e coisas que tais. Desvairada, continuou falando enquanto esperava por pão novo para recolher no depósito apropriado, e sua estultícia chegou à afirmação de que preferia jogar no lixo os alimentos não consumidos em sua casa do que “alimentar esses marginais”.
Permaneci silente, mesmo tomado de enorme vontade de dizer a ela que, ao sair dali, ou em outra hora qualquer, não deixasse de agradecer a Deus o fato de possuir um emprego para garantir o pão de cada dia sem precisar humilhar-se ou correr o risco de ser confundida com os que chama de bandidos.
Já escrevi aqui sobre fato semelhante, mas peço perdão ao leitor se, depois de falar de festa por duas semanas seguidas nos artigos em que tratei de carnaval, volto ao tema que, evidentemente, àquele se contrapõe de forma frontal, mas é que ainda não consegui superar o sentimento de horror que a Servidora, voltando de seu trabalho e ainda com a farda da empresa, causou a mim e a alguns outros que assistimos àquela demonstração de indignação, de enraivecimento, de cólera e de discriminação odiosa. Não me sinto capaz de conter nada que a tanto se assemelhe, por isso conservei-me inerte durante o dantesco espetáculo, mas não consigo deixar de registrar a maldade humana, neste caso absolutamente desmedida. Afinal, não se tratava de nenhum delinquente, senão que de um homem que ali fica em todos os finais de tarde mendigando, com humildade que até o impede de levantar-se da calçada e de olhar para outrem, salvo quando para, em voz baixa, agradecer o pão que se lhe der.
Foi a respeito dele mesmo que ouvi de duas mulheres, nenhuma usando farda qualquer, comentários ofensivos por fato simples igual de pedir um auxílio. Ouvindo-o, de passagem, sem sequer para ele olhar, puseram-se a reclamar e, como denunciei aqui, toldando o que deixavam no ar de caro perfume a denunciar-lhes situação financeira não desconfortável, o que parecia confirmar o padrão do veículo de fabricação asiática que ali estacionaram, disse uma delas que “em Manaus não se pode mais andar na rua, que logo essa gente vem pedir alguma coisa”, complementando a outra que “esses moradores de rua, sujos, que cheiram mal” e coisas outras dessa espécie. Bem, nenhuma das duas usava farda de qualquer empresa – e talvez até se ofendessem se confundidas com simples trabalhadoras – mas uma delas também afirmou ter vontade de chamar a polícia para prender pedintes como aquele.
Como registrei, era tal a revolta das aparentemente jovens madames que ainda no interior do estabelecimento falavam sobre o pobre homem que, segundo assisti, apenas teve a “ousadia” de pedir que lhe minorássemos a fome. Não sei se continuaram a sobre ele comentar, porque fiz questão de me afastar, para não chegar a perder a elegância do silêncio que me impus. A diferença é que essas não esbravejavam, não se esgoelavam bradando sua inconformação contra a existência de esmoleiros, como fez a desta semana. Aquelas demonstraram certo asco, nauseabundas ao falar, esta última exasperava-se com o “ladrão, bandido, marginal”, mas umas e outra o desejavam preso, porque aquilo é caso de polícia.
Que Deus as perdoe!
Imagino que, depois, as madames retornaram a seu belo carro talvez ainda incomodadas, mas se vinham da academia devem ter voltado para suas casas, como há de também ter feito a Servidora, que disse morar em conjunto habitacional de classe média das redondezas, e hão de se ter alimentado fartamente com o que compraram, e assistiram às novelas e a outros programas de televisão, com alguma possibilidade de comentarem com familiares o que tanto as desagradara. Ele, o humilde homem, terá recebido algum óbolo que talvez lhe permitiu dividir um pouco de pão com quem o estivesse a esperar em humilde casa ou pouco mais adiante, sob alguma ponte ou viaduto. E no dia seguinte ali estaria novamente para pedir, porque a fome teria voltado.
Não creio que aquele cidadão – que se chama Alberto e que se faz acompanhar de uma filha que ainda nem conheceu a escola mas já é íntima da miséria – sinta-se feliz por não ter um trabalho com cujo produto possa sustentar dignamente sua família, mas esmolar é o que lhe resta pelo menos enquanto não incluído no mercado de trabalho que nossa sociedade não é capaz de produzir para todos e até quando se mantiver fiel à honestidade que escolheu na vida.