Tradicionalmente, o reinado de Momo dava-se em três dias, de domingo à terça-feira gorda, com o povo nas ruas, em blocos e escolas de samba, e em clubes, com confetes e serpentinas, fantasias e trajes apropriados, a rigor ou simples, cantando, dançando, pulando, extravasando, esbanjando alegria, “sufocando as mágoas”, como disse o poeta, espantando seus próprios diabinhos, ou a eles mesmos entregando-se, ”até o sol raiar”.
Foi isso que autorizou Nelson Ferreira, compositor, a chamar de ingrata a quarta-feira que, como deixou dito em seu frevo tão festejado, “chega tão depressa só pra contrariar.”
Depois, até para honrar a tradição do lugar onde começou o Brasil de hoje, os baianos invadiram o dia ingrato e depois a quinta, e começaram a admitir que os trios elétricos inventados por Dodô e Osmar passassem a convocar para a alegria dois e até três e quatro dias antes do domingo, como também se deu com o lindo frevo de Olinda e de Recife, com o samba carioca e depois paulista, e clubes passaram a chamar foliões para “primeiro grito de Carnaval”, ao tempo em que as escolas transformaram em encontros festivos os muitos dias de ensaio e preparação momesca.
Até os setores governamentais renderam-se à extensão do período carnavalesco e a escolha da corte momesca também passou a ser razão de festa com tempo suficiente para que vencedores possam organizar-se e aprontar roupas de rei e de princesas para comandar festas, desfiles, cantos e danças.
Não são mais três dias e ponto.
Na semana que começa com o domingo gordo, que contém a quarta-feira que já foi ingrata e que permanece de cinzas, vamos ter a reapresentação das escolas campeãs de desfiles, luxuosos ou não, no sábado, talvez para cobrir de saudade (e de ressaca) o domingo seguinte.
Por aqui não é diferente. Parintins realiza o Carnailha que atrai turistas que se contam aos milhares para bem mais de três dias, Manacapuru festeja por nove noites e ainda tem o “Bloco da Fuleragem” na manhã de quarta, festas se sucedem nos outros 59 municípios e Manaus canta, dança e encanta por pelo menos 10 dias nos bairros, no centro, com as bandas tradicionais do Armando e da Difusora, na avenida do samba, nos blocos, de piranhas ou não, e nada começa no domingo gordo nem termina com a ingratidão da quarta-feira. Neste fim de semana teremos o carnaboi em duas noites de “dois-pra-lá-dois-pra-cá”, levando a êxtase os que se encantam com Garantido, com Caprichoso, com Corre Campo, Tira Prosa e Garanhão. Assim será também na Ilha da Magia, que se alternará entre o azul e o vermelho para homenagear o amor.
Depois, tudo voltará ao normal, dizem, havendo até quem proclame que no Brasil o ano só se inicia após o Carnaval.
Li e ouvi, há poucos dias, mensagem de quem chega a tecer críticas ácidas a tudo isso, ao argumento de que o povo não tem o que festejar, que as pessoas são usadas “pela classe dominante” que se refastela com a riqueza de bens materiais deixando à maioria sofrida o dever de trabalhar para fazer crescer o domínio que a submete. E coisas mais nesse sentido. De outro, li e ouvi que desfiles luxuosos costumam ser bancados com dinheiro de origem nem tão lícita – salvo os do poder público, naturalmente – até que servem para ostentar e para lavar, além da moeda, almas nababescas e imperiais.
Os poucos que me leem sabem que não uso este espaço para polemizar sobretudo convicções políticas, que respeito por dever de obediência ao que me ensinaram, desde cedo, Sebastiana e Lourenço. Mas a mim me concedo o direito de pensar que, embora possam ser verdadeiras as alegações e as informações, as folias momescas são do povo, que é quem as faz, e aqueles que a ela se entregam têm direito ao sonho, à alegria, ao prazer, à criatividade, à dança, ao canto e até aos encontros de amor nascente que o Carnaval propicia. As diferenças preexistem e nem mesmo se agravam com a festa e os que a fazem voltam, é verdade, às dificuldades de sempre, mas será como se, em passes de magia plena, as pudessem esquecer e até sublimar no período carnavalesco.
Essa festa é do povo, inteiramente, e se há estranhos esses não serão, jamais, os que cantam, dançam, pulam e enfeitam o tempo e a vida em diversão extrema e verdadeira, do corpo e da alma.
Na maior festa popular do planeta neste ano o Brasil curvou-se, em momentos e lugares vários, à cultura e à crença africanas, e muitos fizeram das passarelas do samba o ressoar dos tambores dos quilombos proibidos e sufocados, poucos até permitidos. Zé Pilintra foi pra avenida, aplaudido, tanto quanto Iansã, Iemanjá, Xangô, Ogum, exus que trancam ruas ou que abrem caminhos, e o país assistiu pela televisão a benzedeiras distribuindo amor e mostrando paz, cantando Milton, quase no nascimento do dia, Mãe Zulmira, Laíla e Orixás de todos os ventos, de todas as matas e de todas as águas, imperando nas encruzilhadas do tempo e da vida.
Muito bem! Mesmo que não seja frequentador de terreiros, nem batuqueiro, filho de índio para honrar a origem, aplaudo havermos, afinal, retirado do espaço menor, do proibido, do feio, a crença dos que, com sofrimento extremo, muito suor, dor e coragem invejável, ajudaram a construir, embora escravos, este Brasil que, sem trocadilho qualquer, é preto desde sempre.