Em 1989, o fotógrafo Protásio Nenê registrou um momento histórico em Altamira, no sul do Pará: o ato de coragem de Tuire Kayapó. Na foto, ela aparece com um facão no rosto do diretor da Eletronorte, durante uma audiência, defendendo a floresta e se opondo à hidrelétrica de Kararaô, que remodelada anos depois, se tornou o projeto de Belo Monte. Sem esse registro, a ação poderia não ter sido eternizada na história.
O caso me leva a refletir sobre o quanto da nossa própria história foi apagada por não ter sido escrita, fotografada ou filmada por nós mesmos. Esse cenário mudou com o tempo, após a luta de nossas lideranças para garantir o acesso à educação e à formação, tanto nos territórios quanto fora, nas universidades.
Em 2015, por exemplo, a 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista (CNPI) foi um momento importante para os povos indígenas. O evento, que contou com a cobertura de jovens comunicadores indígenas, debateu a relação do Estado brasileiro com os povos originários e a formulação de políticas públicas baseadas na Constituição de 1988.
Naquela época, eu estava prestes a me formar em jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), enquanto Erisvan Guajajara havia acabado de concluir o curso pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). A convite de nossas lideranças, eu, Erisvan e outros parentes – como Lauro Padilha, Edgar Xakriabá, Kamikia Kisêdjê e Ray Baniwa – fizemos a cobertura da conferência. Acompanhamos tanto as etapas regionais pelo país quanto a etapa nacional, em Brasília, que reuniu cerca de 2 mil pessoas, incluindo 1.500 indígenas.
Éramos poucos comunicadores, mas produzimos diversos materiais em texto e vídeo, como o quadro ‘Fala Parente’ e o programa de entrevistas ‘Povos em Pauta’. Dez anos depois, o número de comunicadores se multiplicou. A Mídia Indígena, criada por Erisvan e que celebra dez anos em 2025, fez um levantamento que aponta a existência de 1.095 comunicadores indígenas no Brasil, com diferentes níveis de formação.
Tipuici Manoki, do povo Manoki, de Mato Grosso, e uma das cofundadoras da Mídia Indígena, ainda se lembra do dia em que Erisvan chegou com a ideia. “Amiga, gostaria de ter um canal maior do que temos na aldeia, para abranger todos os comunicadores e dar visibilidade às nossas pautas”, disse ele na época.
O coletivo, que nasceu como Mídia Índia, contou com a Mídia Ninja como uma de suas principais aliadas. As formações com os jovens comunicadores foram realizadas pela jornalista Marielle Ramires, que se tornou uma referência no jornalismo independente e uma importante aliada na luta dos povos indígenas.
Com o tempo, o coletivo se multiplicou pelo país e entre os dias 28 e 31 de agosto, eles realizaram o 1º Encontro Nacional de Comunicação Indígena na Casa Maraká, em Belém. Mais de 100 comunicadores de 62 povos participaram do evento, que teve como objetivo fortalecer a rede e planejar a cobertura da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 30).
“Este sonho é um projeto coletivo, pensado há muito tempo, e agora se torna realidade. A Casa Maraká será o ponto focal para os comunicadores indígenas, um espaço para partilhar ideias e pensar em campanhas e estratégias de comunicação, para juntos fortalecermos o protagonismo dos povos indígenas. Estamos aqui para mostrar que nossa rede é gigante e que somos a resistência e o futuro da comunicação indígena no Brasil”, afirmou Erisvan Guajajara.
Flay Guajajara, um dos cofundadores do coletivo, abriu o evento com um canto de proteção e, em seguida, expressou a sua alegria. “Sou o pai dessa rede, a vejo como um filho. Hoje, porém, são muitos os que a cuidam, conectando o passado, o presente e o futuro”.
Priscila Tapajoara, coordenadora nacional do Mídia Indígena, contou que, quando começou na área, não havia muitas mulheres comunicadoras com câmera. Ela não se sentia representada por não ver rostos parecidos com o seu registrando as lutas de seu povo.
“Ouvir essas lutas foi o que me deu ânimo para continuar. Quando vejo a quantidade de pessoas e de mulheres aqui hoje, me sinto muito inspirada. O número de comunicadores cresceu muito e precisamos fortalecer uns aos outros, unindo a comunicação ao nosso conhecimento tradicional”.
A artista, ativista e comunicadora Daiara Tukano, ex-coordenadora da Rádio Yandê (a primeira webrádio indígena do Brasil), participou de uma das palestras do evento. Ela destacou o papel fundamental da comunicação para as conquistas dos povos indígenas, reforçando que “não existe luta sem comunicação”.
Ela lembrou que, já na década de 1950, o povo Kaingang se organizava em assembleias e produzia o jornal ‘Palavra de Índio’, escrito em português com sotaque Kaingang. “Hoje, a comunicação é um dos pilares da nossa luta”, acrescentou.
“Encontrando essa juventude, como uma ‘titia’ para eles, vejo o potencial de cada semente de memória que temos em nós, que pode florescer de diferentes formas. Que a comunicação viva em todas as suas expressões e que cada vez mais sonhos brotem”, finalizou Daiara.
Ykarunī Nawa, coordenador geral da Articulação Brasileira dos Indígenas Jornalistas (Abrinjor), apresentou um levantamento histórico sobre a comunicação indígena. Ele ressaltou que não é possível definir uma data de início, já que a comunicação ancestral é atemporal.
No entanto, em sua palestra, ele trouxe marcos históricos importantes na linha do tempo, como: o mandato do deputado Mário Juruna, do povo Xavante; o Programa de Índio da Rádio USP, de 1985; o Vídeos nas Aldeias, de 1986; a Constituição de 1988; e o Acampamento Terra Livre, de 2004, entre outros.
“Um dos pontos importantes da comunicação indígena é a relação com o território. Se nós somos, como diz a Nará Baré, ‘o próprio território’, nos comunicamos, não só a partir dele, mas nós somos ele. Então, o território é a nossa comunicação. E a nossa atuação parte justamente desse pertencimento com o território, com as nossas lideranças”, ressaltou Ykarunī.
Hoje, a Abrinjor tem 65 membros de 45 povos, sendo 42 mulheres e 23 homens, com 37 formados e 28 estudantes. Eu, Erisvan e Ariene Susui, do povo Wapichana, que também participou do evento, somos alguns dos membros. Depois de muito tempo nos sentindo sozinhos nessa luta, agora temos um coletivo gigante e potente para seguir em frente.
Como palestrante, ministrei uma atividade sobre técnicas de entrevista. Em Belém, pude ver de perto a força do coletivo e a potência do trabalho que tem sido produzido pelos comunicadores, um esforço fundamental para reflorestar mentes.
Por meio de nossas produções, levamos a memória e a história de nossos povos não apenas para os territórios, mas também para os não-indígenas. Dessa forma, construímos a história do nosso país, uma história que, agora, é narrada por nós.