“Hoje eu sou um ‘tanto faz’ para quem tanto fiz”!
Ouvi essa expressão, forte em si mesma, da voz de sua própria escritora, por cuja
produção nutro respeito profundo e onde costumo encontrar, além de fonte de
inspiração, verdades reconhecidas por vasta e rica experiência de vida pautada na
entrega que só o Amor (assim maiúsculo) pode proporcionar. É o que ela lançou em
texto onde cuida de pessoas idosas que, mesmo contra sua própria vontade, são
conduzidas a habitar casas de repouso, distante dos membros de suas famílias.
Não estaria aí, por certo, simples registro de fatos escondidos e guardados com o rigor
de quem sabe o que fez, mas, ao que me soou, um grito de alerta de dor que dói
intensa, que machuca fundo, que faz sangrar um coração que tanto amou, desde
muito cedo, e que só se deu, muitas vezes até esquecendo de dar-se a si mesmo.
É grito contra a indiferença a que o correr da vida moderna termina por conduzir,
mesmo que muitos dela nem se apercebam, necessitados de preocuparem-se com
seus próprios afazeres, às vezes múltiplos, com suas doações mesmas, com a
impessoalidade crescente a que estão sendo conduzidas as relações interpessoais, que
quase não mais comportam os abraços, os beijos e os afagos, muitas vezes
substituídos por expressões escritas em siglas nos celulares, nos computadores, nos
tablets, nesses equipamentos modernos, enfim, que, a pretexto de encurtar distâncias
e de tornar ágil a comunicação, fazem-nos cada vez mais distantes da própria essência
da vida humana.
No texto, lido ao telefone logo que escrito, sob a emoção mais verdadeira de quem o
fez, portanto, deixando de lado a primeira pessoa do singular da frase-mãe, a autora
trata de quem possa haver relembrado desde o tempo em que era preciso dar as
mãos para ensinar a caminhar, era indispensável usá-las para proporcionar a higiene
física de todos os dias, o conduzir para a escola, a ginástica, as aulas de dança, a
academia, o sentar para ajudar nos estudos, fiscalizar as tarefas, chorar em silêncio as
derrotas e alardear, em abraços de entrega, as conquistas por menores que pudessem
parecer a quem não ajudou a construir. A vaidade intensa, regada pelo amor, de dizer
“é meu filho”, “é minha filha”, a significar mesmo um pedaço de mim, que estou
procurando fazer melhor que eu, e bem no íntimo um afago em seu próprio ser em
forma de agradecimento a Deus pelo belo vivido.
E aprendem a caminhar, a andar de bicicleta, retiradas as rodinhas de equilíbrio, e
crescem e cada vez mais vão para o mundo, porque é assim que precisa ser, porque é
para isso que pais e mães costumam dedicar grande parte de suas vidas ajudando a
edificar, e vão deixando de lado a busca do amparo, a necessidade do conselho, a
insegurança, o medo de ir. Na plateia do privilégio, os que orientaram a caminhada
regozijam-se, mesmo quando entregues à solidão imposta pela distância, a cada passo
da conquista.
E é tanto que vão, caminhando com suas próprias pernas, correndo seus próprios
destinos, que chega o tempo de serem os construtores e aí, registra minha autora
preferida, “constroem suas famílias de que às vezes nem mesmo fazemos parte.”
Quando assim é, até pode acontecer um “feliz natal”, dito em pressa de quem precisa
ir para sua própria vida, para a loja, para a festa, para ser Noel, para receber os
abraços e beijos que já não reproduz do tempo em que a benção ornava cada presente
, por mais simples, ao pé da árvore que agora já nem nota porque o pouco tempo da
presença não permite. E se a festa é de Ano Novo, o espocar do espumante, se há, já
não se acompanha dos gritos que antecediam os bons augúrios.
“A Casa dos Esquecidos”, que titulou o texto que me trouxe a esta emoção, pretendeu
reportar-se, em verdade, aos asilos, tenham que nome tiverem, lugares para onde
alguns filhos preferem levar os pais envelhecidos, seja porque ali encontrarão pessoas
de seu tempo de vida, facilitando a convivência, preenchendo a solidão, afastando a
angústia da saudade, seja porque haverá profissionais convenientemente preparados
para cuidar das mazelas que muitas vezes o passar do tempo de vida impõe ao corpo.
Pode haver uma verdade escondida, raramente proclamada, qual seja a de livrar-se do
dever de cuidar de quem tanto cuidou.
Mas não são esquecidos somente os transferidos para lugares assim. A própria casa
do idoso, de tantos sacrifícios, de muitas alegrias, de derrotas e vitórias, de tropeços,
de ensinamentos e aprendizados, a mesma casa onde a vida se deu, e até começou,
transforma-se muitas vezes em lugar de abandono igual, e aí sem os amigos, de antes
ou novos, sem cuidadores ou com relação estritamente profissional, para os que
podem, sem assemelhar-se em nada aos cuidados que dedicou com o amor paterno
ou materno.
Não é o que se dá comigo, mercê da bondade divina, mas num e noutro caso, qualquer
que seja o lugar da solidão, da reclusão, do abandono, do esquecimento, penso como
Maria Justina que fala da semelhança, em muitos exemplos, entre os idosos e os
objetos que, por envelhecerem, são jogados fora, postos de lado, certamente por
imprestáveis para continuarem a servir.
E não encontrei nenhum sinal de revolta no registro de que “se esquecem de que
amanhã serão eles os esquecidos”.
Vida que segue!