MEU PAI – Por: Lourenço Braga

Houve tempo em que festejar o dia consagrado aos pais era, para mim, beijar, com repetição maior que nos outros dias do ano,  a fronte do marinheiro que me comandou a vida, ensinando e compreendendo os passos trôpegos das caminhadas iniciais recheadas de quedas que a novidade sempre provoca em todos os que ousam pôr-se de pé, mesmo em esforço gigantesco, para ir ao abraço fraterno que os espera.

Na casa humilde da Avenida Ayrão, aqui  em Manaus, em que Lourenço e Sebastiana haviam plantado o amor, com todas as suas belas consequências, eu repetia o aprender a caminhar que iniciara ali no Boulevard Amazonas, bem próximo do “entroncamento”  hoje a portentosa Avenida Djalma Batista, e, sempre que seu trabalho a ele permitia dividir conosco a felicidade de seu acalento físico, corria para seus braços e para seu abraço que me agasalhava o medo, a insegurança, a fragilidade até. Ali, naquele ninho de amor intenso, não havia palavra que  pudesse sobrepor-se ao carinho mágico da benção que eu recebia com o beijo que me dizia “Deus te faça feliz”.

Seria uma conversa entre Lourenços,   ou um desenho que nunca se permitiu acabado da  vida que viria? A ele, em que pese a experiência do tempo que vivera  e o amor que com a construção da vida  aprendera a buscar e a entregar,   ele próprio não se concedia a proclamação de verdades incontestáveis, mas era no beijo no pequenino, sob o agasalho de seu abraço, que transmitia a segurança indispensável a quem queria ir adiante.

Hoje, buscando os passos iniciais da felicidade de o haver conhecido como  responsável por provocar minha geração no ventre de Sebastiana, única que a ele se igualava na capacidade de amar, parece que recebo, tanto tempo depois, agora trazida do plano espiritual, a força para ir adiante e a segurança para os passos indispensáveis a caminhar. E o vejo, tomado de saudade intensa, não como o super-homem, imbatível, acima de dores e de dificuldades, mas como o ninho em que os pequenos costumam buscar o agasalho, o calor, a segurança e o  amor que nem sempre sabem que existe.

Lourenço, pai dos que hoje somos pais, e até avós, transmitia a segurança que só o amor é capaz de construir e de dizer, e jamais se afastou do equilíbrio entre o abraço fraterno e meigo e o ralho indispensável  para a correção de rumos. Não se furtava a repetir o que ensinava da vida, com doçura que hoje nem vejo, mas não abdicava da responsabilidade que assumira quando, por amor que aprendi a respeitar e que sobreviveu a cinco décadas da vida, indicava a correção de  caminhos na busca de construir um norte que a bússola do bem que nele se fizera precisava orientar.

Não havia castigos físicos, nem dores no corpo, mas o rigor de um olhar seu de condenação por qualquer atitude que reprovasse doía como rebenques ou açoites na alma e provocava a consciência da correção. Nem precisava falar.  O olhar seguro parecia invadir-nos o espírito e gritar em nós o erro. E também não se ausentava em momentos assim a carícia espiritual da ternura paterna, e era como se houvesse dito, para sempre, que aquilo estava errado, e ponto, e pronto, porque logo sua mão de baiano, que não fizera em riste qualquer dedo, dava-se em acolhimento de amor e o beijo seguinte acomodava a crença.

Fui crescendo e recebendo dele o incentivo de quem crê no que há de vir e pareço lembrar hoje, colhendo do álbum de fotografias que o peito guarda, sua alegria por subir ao palco do velho e magnífico Teatro Amazonas para, como paraninfo, a mim me entregar o diploma de professor normalista conferido pelo Instituto de Educação do Amazonas. Na presença da Diretora Lila Borges de Sá, olhamo-nos nos olhos e o que nos dissemos em silêncio não há quem consiga decifrar.

E Lourenço, o pai,, não se colocou à frente, para receber o diploma que me deveria entregar, e foi como se me estivesse a dizer, com o silêncio que eu aprendi a ler, que era minha a festa. Não, Pai, não era.  Aquela era uma noite de gala da fé e tudo o que eu ali recebia brotara de você e de um amor extraordinário de sua, de nossa Sebastiana.

Ao entregar-me o diploma, Lourenço me disse que eu devia honrar o que aquilo representava. E sua alegria não foi diferente quando, dias depois, o acompanhei à oficina em que se encontrava o navio de sua faina e ele, com brilho nos olhos que até hoje me fortalece o coração, disse a colegas de trabalho: este é meu filho Lourenço, já é professor!

Parece que escuto ressoar no íntimo de mim, bem mais que suas palavras, a alegria do dever cumprido e uma prece de agradecimento ao Pai por mais uma das muitas conquistas que lhe havia permitido com os filhos que vieram antes de mim.

E foi exatamente  o que fiz a seguir os passos de João, o primogênito, e buscar o curso de Direito em nossa tradicional Faculdade da praça dos Remédios, tão próxima do porto onde, por tantas vezes e com ansiedade que nem consigo definir agora, te fui esperar, papai,  sentado no tempo, os olhos fixos no caudaloso rio e nos barcos que despontavam ao longe, seguindo a data que indicaras em carta encaminhada à tua Sabá, mesmo que sem horário estabelecido, eis que então não havia os recursos que hoje permitem com segurança a administração do tempo.

E ali, Pai, naquela escola a que nem tiveste acesso e onde foi honrada a origem de teu filho mais velho, primeiro colocado em sua turma de alunos, consegui restabelecer em ti a alegria de mais um filho formado em Direito, e igual a  João te fiz chamado ao palco da glória para, no mesmo Teatro de antes, receber das mãos do reitor Aderson Dutra o anel que a Universidade me ofertava pela conquista que te entreguei. Orgulho? Não, apenas preces a Deus por nos haver permitido a caminhada.

Assim também se deu,  como prêmio à dedicação com que nos conduziste ao lado de Sebastiana, com José, violinista primoroso que se fez Desembargador Federal; com Maria Justina, Assistente Social e educadora de primeira ordem; com Ana  Maria,  pediatra que se  entregava ao desvelo de anjo no trato de milhares de crianças; com Robério, político, advogado e reconstrutor do respeito à Cultura no Amazonas.

Eis o resultado do plantio!

Nas viagens que realizamos, no navio Industrial, em que trabalhavas e que fizeste questão inafastável de pagar com teu trabalho e teu salário, aprendi a constatar, com a retidão de teu caráter, o espírito humanista que em ti havia. Em cada barranco, para que o navio se reabastecesse  de lenha indispensável à caldeira, muitas foram as vezes em que te vi abraçado por crianças com quem distribuías as bolachas, o leite e os demais alimentos que compravas e que devias revender  para melhorar teus rendimentos. Hoje, tentando seguir-te os passos, com fraqueza que proclamo, tenho como certo de que recolhi, em momentos que tais, as lições mais fortes de humildade e de solidariedade a que já assisti. E é do que lembro, pai, quando vejo, mesmo na ilusão da propaganda, os papais  noéis que fazem a alegria dos infantes.

Aí  também te encontro quando assisto, a cada Natal, Lourenço, o neto, filho de João, vestido a caráter para entregar a crianças que sequer conhece bem mais que a alegria do presente que muitos recebem sobre os sapatinhos mágicos, o respeito do amor. Era assim que fazias, a cada porto, a cada barranco, a cada criança que em ti buscava a alegria e a segurança da vida. Algumas delas, ou muitas, quem sabe, podem estar no próximo domingo lembrando de ti e festejando o dia dos pais.

Agora que não mais tenho a ternura do abraço, que se fez saudade, beijo teu espírito, com amor não menor, e rogo ao Pai Superior que, no plano que habitares, a ti conceda a paz da Divindade, a paz de Sua misericórdia, de Sua clemência e de Seu perdão, e te dê a luz necessária para iluminar teus caminhos e tua caminhada, conduzido por mãos abençoadas do Bem,  em busca do conhecimento real da Sua bondade, da Sua verdade e da Sua justiça.

Onde estiveres, digo-te: obrigado, meu pai!

Que Deus te abençoe!

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