Por Lourenço Braga: COISAS DA VIDA

A vida é, decididamente, uma sequência de atos, fatos, circunstâncias, acontecimentos que se misturam, que se entrelaçam e se opõem sem que nem sempre possamos controlar, sentimentos que parecem antagônicos, salvo por nascidos e agasalhados no mais íntimo de nós, alguns de forma perene, como a querer perpetuarem-se.  Não se apressem à crítica os amigos filósofos nem outros doutores das ciências humanas, que não vou continuar aqui a cometer pecados que sei possíveis de incomodá-los por ingerência indevida, mas é que quem escreve submete-se a risco de deixar ecoarem gritos de alegria e de tristeza que lhe vão à alma no tempo da conversa, mesmo aquelas que, como sempre se dá com as minhas, ornam-se da simplicidade própria dos que se reconhecem incapazes de altos voos na construção literária.

É que recebi no 1º dia deste março de todos os anos a alvissareira notícia de que minha segunda neta, Maria Fernanda, recebera,  em tarde que a natureza parecia também festejar, sol vibrante e céu de brigadeiro, documento que atesta a conclusão de curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo, promovido por Universidade local. Lágrimas descendo pelo rosto, muitas, outras mais explodindo no peito cheio de amor, indescritível a alegria que me invadiu. E foi tal que me senti capaz de beijar-lhe a fronte no mesmo instante, com  o auxílio do telefone celular que naquele momento fazia desfeita a distância física entre nós e a senti em abraço fraterno de espíritos unidos há pouco mais de duas décadas, quando a vi nascer e, depois, acompanhar seus passos, desde os primeiros. E a bondade divina fez  que a divisão daquele instante de magia e de vitória ocorresse a apenas dois dias de seu novo aniversário.

Na retaguarda dessa caminhada, Juliana, simplesmente mãe, e avó Raquel, que se deram inteiramente, em desvelo, dedicação e renúncia, à construção de cada dia.

Curioso que a terceira geração desta família comece a afastar-se da tradição iniciada por João, o primogênito de Sebastiana e Lourenço, que acabou por conduzir a quase todos para os estudos da área jurídica, que hoje reúne desembargador, juízes, oficial de justiça, consultores, assessores e advogados que se contam por dezena. Gláucia era exceção, trabalhando a ciência farmacêutica, como foram as irmãs Maria Justina, Assistente Social, e  a pediatra Ana Maria.  Mateus, neto de José, iniciou-se, deveras entusiasmado, em estudos de medicina, desde logo intrometendo-se corajosamente no desafiador ambiente das cirurgias, como a seguir nossa saudosa Nina, depois cedeu a apelos de sonhos e, graduando-se em universidade gaúcha, fez-se comandante de aeronave comercial. Talvez nem se tenha dado conta, mas ao trilhar esse caminho escolheu a vida de viajante que viveu seu bisavô Lourenço, comandante de todos, em barcos e navios a lenha que  singraram os rios deste Amazonas de tantas belezas. Agora, temos uma Arquiteta, engenheira da beleza, poeta da arte de tornar agradável o ambiente da convivência humana.

É a vida renovando-se e abrindo seus novos e próprios caminhos. E o coração do escrevente palpita aqui de alegria incontida.

Em contraponto, no dia seguinte, 2 de março,  todos deste clã lembramos o nascimento de João, o primeiro de nós, que para aqui parece ter vindo com a missão de ajudar a nos conduzir, o que fez com maestria inigualável. E a festa de seu aniversário,  87 neste ano,  transforma-se na tristeza da saudade que o amor verdadeiro planta em nós para sempre desde o inevitável instante do “nunca mais”.

Sei que vai parecer lugar comum, mas ele era mesmo uma pessoa especial, espírito superior, por certo, capaz do que ouso chamar de extraordinário perdão preventivo, que nascia em sua bondade imensa mesmo antes de ser atingido por qualquer dos atos humanos que servem para ferir. Não conheceu o ódio, a mágoa, menos ainda a inveja, e fez da amizade aos amigos crença verdadeira. Não cultivou o mal e gestos humanos de beleza sem par, sobretudo de respeito absoluto a todos os seus semelhantes, sem distinção qualquer, pautaram sua vida de advogado, procurador, vereador, político, prefeito e, em todos os momentos, professor. Também conduzido pelo ideal do magistério, que certamente herdou de Sebastiana, a nós nos legou o exemplo e o entusiasmo e fomos todos para a convivência da beleza incomparável que só a sala de aula constrói.

Jamais encontrei aluno seu, na Faculdade de Direito da UFAM que como eu dirigiu, eleito pelo voto direto da comunidade acadêmica, que não lhe destacasse a competência, a seriedade, a urbanidade, a amizade e  o fino trato com todos, com simplicidade singular, tudo que a ele lhe autorizava  o rigor com que formulava e corrigia as provas, assim como os exercícios e os trabalhos produzidos. É o que ainda hoje escuto de ex-alunos seus, os que permaneceram na advocacia, pública ou privada, tanto quanto os que enveredaram pela magistratura ou pela função ministerial. Sua lembrança é, em todos, feita com ternura.

João tinha espírito conciliador e sempre que nós, mais novos, o procurávamos para dividir angústias naturais da vida nele encontrávamos palavras que nos animavam na caminhada e nos repunham no ponto de equilíbrio necessário. E era tal a força espiritual com que exercia o papel de irmão mais velho, quase pai, que até o sorriso, sem nenhuma palavra, acalmava os ânimos e nos mostrava o norte.

Era assim também com amigos e alunos, e até com os que se faziam adversários na vida, política ou cotidiana. Lembro, a esse propósito, de episódio que envolveu um vereador de Manaus, que depois se faria senador da República e que decidiu, para cumprir papel de opositor do governo instalado, usar a tribuna para proferir discursos ácidos contra a área de segurança pública, onde João servia como subsecretário. A cada dia um discurso novo, que incluía ataques pessoais, até que o ofendido, sem garantia qualquer de segurança a que tinha direito pelo exercício do cargo, compareceu ao plenário do legislativo municipal – cuja tribuna usara ainda bem jovem como líder do prefeito de então – e sem pronunciar palavra sentou-se na primeira fila, fazendo-se visto por todos, inclusive pelo agressor contumaz, que naquele dia, e a partir dali, passou a dirigir a outrem as ofensas que lhe garantiam prestígio e votos. Terminada a sessão, cuidou João de cumprimentar um a um os edis todos, inclusive quem lhe fora desafeto até aquela manhã.

Impossível, pois, não sentir sua falta.  Não lhe poder beijar a fronte no 2 de março é dor inevitável, indescritível, funda na alma, que se contrapõe à alegria do bacharelado do dia 1, mas a mim me serve o consolo da crença de que aqui estamos todos para fazer da alegria e da tristeza, do abraço e da saudade, componentes do Amor, fontes de aprendizado para a vida que há de vir. E se assim é, acredito, mesmo em lágrimas, que João há de ter construído entre nós estrada abençoada por Deus para sua elevação espiritual.

Que seja farta em bençãos para ambos a beleza da arquitetura do depois.

São coisas da vida!

Lourenço Braga, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
lourencodossantospereirabraga@hotmail.com

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